quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Escola Ribeirinha ou Escola do Campo?

Educação ribeirinha, no contexto atual da legislação educacional brasileira é que se conhece como educação no campo ou educação em área rural. Nesse contexto, para quem conhece essa realidade, logo vai perceber que na maioria dos casos não existe escola do campo, mas uma escola urbano-cêntrico, ou seja, a reprodução do currículo das escolas localizadas nas áreas urbanas, no campo.


Fonte: Secom - Governo de Rondônia, 2015.

 

A denominação “escola ribeirinha” que tem sua movimentação em função das cheias e das vazantes dos rios, abundantes na região, tem sido defendida e vem ganhado força como modalidade de ensino, pelos movimentos de defesa da identidade amazônica. No entanto, até então, não se tem percebido, mesmo com todo o avanço que traz a nova Base Nacional comum Curricular, algum movimento em relação a organização de currículo voltado para essa realidade.


Atualmente, com o forte avanço da polarização da educação em áreas rurais, em função dos repasses de recursos pelo governo federal para as unidades mantenedoras dos sistemas de ensino, como é caso do transporte escolar, muitas dessas escolas foram desativadas. Porém, ainda têm-se unidades localizadas em áreas de difícil acesso onde há a predominância de classes multisseriadas.


As classes multisseriadas são uma forma de organização de ensino na qual o professor trabalha, na mesma sala de aula, com várias séries do Ensino Fundamental simultaneamente, tendo de atender a alunos com idades e níveis de conhecimento diferentes. Essa realidade para a maioria dos professores traz serias dificuldades quanto a realização do atendimento individual aos estudantes bem como no planejamento das aulas para as séries iniciais do Ensino Fundamental em um mesmo horário. A falta de material didático e bibliotecas no ambiente rural também é um entrave rotineiro na realidade das classes multisseriadas.


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Um pouco da Amazônia ribeirinha

 

Distrito de Nazaré.  https://www.rondoniagora.com/. Publicado em Quarta, 19 de Fevereiro de 2014

A principal forma de estrada usada para a locomoção dos povos que vivem em áreas ribeirinhas da Amazônia são os rios. Apesar da imagem mundial propagada mundo a fora sobre os grandes rios nessa parte do planeta, muitas vezes, são copos de água pequenos, estreitos, com curvas fechadas, de muita correnteza e em muitos casos com imensos troncos flutuando ou submersos.

O fato é que esses mesmos rios tão utilizado por essa população também são motivos de preocupação, não só pelo grande volume apresentado na época do inverno amazônico, mas também pela imprevisibilidade que restringe em muitos o transporte na região para os ribeirinhos que têm em comum as canoas e pequenos barcos feitos de madeira.

As palafitas, tipo de habitação construída sobre troncos ou pilares, comum em áreas alagadiças, pois deixa a casa em uma altura que a água não alcança, são o tipo de construção comum nessas áreas. Nesse tipo de construção, os materiais utilizados são recursos do próprio ambiente natural onde vivem.

A água consumida vem dos rios ou de igarapés sem nenhum tipo de tratamento e serve para todo tipo de higiene e consumo no ambiente familiar. É utilizada igualmente como depósito de resíduos fecais, considerando que a grande maioria das palafitas não possui instalações sanitárias adequadas. Nesse ambiente a propagação de doenças de origem hídrica frequentes como verminoses, parasitoses e patologias da pele são constantes.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Professora é removida de escola pública por ‘insistir na temática indígena

 Publicado na Revista Eletrônica O Sul21, em 8 de outubro de 2021 - 13:41

Decisão para retirar Márcia Mura da escola ribeirinha “veio de cima”, segundo a diretora. Sindicato dos Trabalhadores da Educação de Rondônia vê indícios de perseguição.

Decisão para retirar Márcia Mura da escola ribeirinha “veio de cima”; segundo Sintero, perseguições a professores são frequentes. Foto: Tanisson Nunes/Reprodução Instagram.


Márcia desceu o baixo rio Madeira no último 25 de agosto sem saber quando voltaria à comunidade ribeirinha de Nazaré, distrito de Porto Velho (RO). Naquele dia ouviu da diretora Ana Laura Camacho que não fazia mais parte do quadro de professores da Escola Estadual Professor Francisco Desmorest Passos. Com um memorando de devolução em mãos, passou na sua maloca, pegou alguns pertences, e mal se despediu. Uma vizinha, sem saber do ocorrido, lhe presenteou com uns puruís (fruta acre e doce). Não sabia ao certo o que faria, só que deveria procurar o setor de lotação.

O relatório circunstanciado que sustenta o pedido de remoção da professora Márcia Nunes Maciel, Márcia Mura, doutora em História Social pela USP (Universidade de São Paulo), indígena da etnia Mura e pesquisadora indígena, apontou dificuldades em lotar a docente em escolas ribeirinhas por “insistência da professora em inserir a temática indígena”.

A professora voltou a Nazaré nos dias seguintes, mas a remoção já estava decidida e “veio de cima”, segundo a direção da escola, com orientação para lotar Márcia em uma escola de Porto Velho, na cidade, longe das comunidades tradicionais e originárias. Ao longo de 49 páginas, o documento, que recebeu aval do Núcleo de Apoio à Coordenadoria Regional de Educação de Porto Velho, órgão ligado à secretaria de Educação estadual, narra uma série de episódios relacionados à resistência da professora em aceitar processos que desconsideram a perspectiva de uma indigenista como ela.

Trechos do relatório de remoção da professora Márcia Mura. Foto: Reprodução

Apesar de registrar que a professora lecionava “apenas conteúdos relacionados à questões indígenas”, o relatório usado para remover a professora mostra que Márcia ministrou assuntos que fazem parte da Base Nacional Comum, como a história de Marco Polo, sociedade medieval, Feudalismo e Iluminismo. O relatório de remoção tenta justificar a penalização da professora apontando que ela não utilizava o livro didático, reafirmando diversas vezes que existia uma “insistência da professora em inserir a temática indígena e local para todos os estudantes”.

“Fiz muitas atividades transdisciplinares em sala de aula, pois sempre trabalhei partindo da perspectiva indígena sim, dialogando a partir do local para entender o global, entendendo que um não está desligado do outro”, argumenta Márcia.

A professora indígena estaria sendo vítima de perseguição por seu trabalho, avalia o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Rondônia (Sintero). “Existe uma certa perseguição pelo trabalho da professora que é de resgate da tradição indígena”, diz a secretária de assuntos educacionais do Sindicato, Judith Campos. Para ela, além de perseguição, o caso pode configurar assédio moral. “O próprio caso em que a escola apagou a figura de um indígena na parede confirma essa perseguição. A escola tinha outras paredes e espaços para fazer novos desenhos, mas escolheu justamente apagar a imagem do índio”, diz, se referindo ao episódio narrado no documento de afastamento, quando Márcia chorou ao ver que a escola apagou o mural na área de uso coletivo que retratava um índio inca. O embate terminou com a professora chamando os membros da direção de “etnocidas”.

Márcia é uma destacada historiadora e liderança indígena de Rondônia. Em 2010, a professora ganhou o prêmio de intercâmbio cultural do Ministério da Cultura (Minc), para apresentar sua pesquisa de mestrado sobre mulheres que vivenciam o espaço do seringal na Amazônia pela Federal do Amazonas (UFAM). É autora do livro “O Espaço Lembrado – Experiências de Vidas em Seringais da Amazônia” e faz parte do Instituto Madeira Vivo e do Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO/USP).

Recentemente, ela organizou a caravana das mulheres Muras da Amazônia na Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, quando mais de cinco mil mulheres de 172 etnias ocuparam a capital federal durante a primeira semana de setembro para lutar por direitos e contra o Marco Temporal, que trata das demarcações das terras indígenas. Ela critica abertamente o governo Bolsonaro, que defende a exploração de territórios originários pelo agronegócio. Desde a eleição do atual presidente se intensificaram os ataques e violações de direitos de povos indígenas, bem como ameaças a instituições de ensino e perseguição a professores acusados de doutrinação ideológica, como mostrou relatório do Global Public Policy Institute.

Agência Pública vem reunindo relatos de perseguições políticas em ambientes acadêmicos em uma investigação participativa. Você pode enviar denúncias pelo formulário online.

A Escola Professor Francisco Desmorest Passos está instalada em uma comunidade ribeirinha, no contexto rural, mas para a direção deve ser enquadrada como escola comum, sem currículo diferenciado.

Márcia foi advertida mais de uma vez, segundo a direção, com o argumento de que a única temática trabalhada pela professora durante todo o ano letivo teria sido “cultura local e cultura indígena”. Em uma das ocasiões narradas no relatório de remoção, ela defendeu a mudança do nome da Feira Gastronômica da escola, que passou a se chamar Encontro de Saberes e Sabores. A professora argumentou que “feira gastronômica soava muito eurocêntrico”.

“O parecer da devolução me coloca como se fosse eu que tomasse uma decisão isolada. Isso é desmerecer todo o processo colaborativo participativo construído na escola. Que tínhamos discordância metodológica isso sim, mas seguíamos as decisões do coletivo. Algumas propostas que apresentei foram aprovadas, como a mudança do nome da Feira Gastronômica para Encontro de Saberes e Sabores”, diz.

Com a pandemia, as atividades deveriam ser impressas e entregues aos alunos. Mas a supervisora da escola achou que o conteúdo de Márcia não era adequado —o relatório não cita o conteúdo das atividades, apenas que eles tratavam da questão indígena. As atividades não foram impressas pela escola, porém o relatório registra que Márcia distribuiu os conteúdos.

Por telefone, a diretora da escola Professor Francisco Desmorest Passos, Ana Laura Camacho, disse que a decisão para remover Márcia do quadro de funcionários daquela unidade “veio de cima”.

“A escola é do governo, somos funcionários do governo, do Estado. Existe uma linha dentro da Educação que precisa ser seguida. Eu não posso fazer aquilo que eu quero, quando eu quero, da forma que eu quero, só quando eu tiver uma barraquinha de pipoca”, afirmou. Questionamos a diretora sobre a quem ela estava se referindo quando disse que “a ordem para remover Márcia veio de cima”, mas ela não respondeu. Encaminhamos pedido de resposta também à Secretaria de Educação do Estado, mas eles não responderam às nossas perguntas.

A presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Educação, Lionilda Simão, diz que as perseguições têm se tornado cada vez mais frequentes na Educação em Rondônia. “Temos outros casos de pessoas que foram removidas dos seus setores por pura perseguição”, afirmou. O Sindicato já pediu à Secretaria de Educação uma apuração mais detalhada dos casos de abusos e assédios.

O atual governador de Rondônia, coronel Marcos Rocha (PSL), aliado de Bolsonaro, ficou famoso por censurar livros. Em fevereiro de 2020, logo no início de sua gestão, a Secretaria de Educação do Estado solicitou o recolhimento de títulos das bibliotecas das escolas julgados como inadequados para crianças e adolescentes.

Constavam na lista obras dos autores Mário de Andrade, Machado de Assis, Franz Kafka, Euclides da Cunha e também as do teólogo, psicanalista e educador evangélico Rubem Alves, que tinha todas as obras destacadas como impróprias. Na época, o secretário de Educação, Suamy Vivecananda Lacerda de Abreu, disse que a lista se tratava de um rascunho. Naquele mesmo mês, Suamy anunciou mais cinco escolas militares. Já são pelo menos 13 unidades de ensino neste modelo em Rondônia.

Além de militar, Marcos Rocha também é evangélico e defende a produção agropecuária em terras indígenas. Em janeiro deste ano, o governo de Rondônia sancionou a redução de 161.599 mil hectares das unidades de conservação Reserva Extrativista Jaci-Paraná e Parque Estadual Guajará-Mirim para privilegiar a criação de gado. A decisão do impacta diretamente nas Terras Indígenas Uru-eu-wau-wau, Karipuna, Igarapé Lage, Igarapé Ribeirão, Karitiana e os povos que estão em isolamento voluntário na região.

A diretora da escola confirmou que o fato de Márcia trabalhar a questão indígena nas aulas de história foi o que pesou para sua remoção: “Você querer colocar na cabeça das pessoas que elas são indígenas mesmo sem ser, fica difícil. Esse é um dos motivos por ela se negar [a passar outros conteúdos] como está no meu relatório”, afirmou, emendando: “Ela é indigenista. Ela procurava passar só o mesmo conteúdo e quando a supervisora falava ela se negava a mudar”.

Os professores da Escola Professor Francisco Desmorest Passos estão fazendo hora-extra para cobrir a falta da professora. Ana Laura confirmou que há dificuldade para encontrar docentes dispostos a trabalhar na comunidade ribeirinha. “Por mim ela não sairia nunca, porque precisamos do servidor. É um local de difícil aceitação devido à distância, mas infelizmente as pessoas fazem por onde”.

Márcia recorreu da decisão na Secretaria de Educação. Em sua defesa, fez um histórico da sua carreira na escola e rebateu cada um dos pontos do relatório. A Secretaria ainda não se manifestou sobre o recurso da professora.

Apesar das diretrizes da LBD orientarem ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena, Mura foi removida da escola por “insistir na temática indígena”. Foto: Arquivo Pessoal

Apesar de estar inserida em comunidade ribeirinha, às margens do Madeira e em território ancestral Mura, para o Estado, a escola Desmorest Passos recebe o mesmo tratamento que uma escola urbana, sem currículo diferenciado. O Sindicato dos Trabalhadores da Educação defende que a escola deveria ser enquadrada como escola rural, e não urbana.  Em todo caso, a unidade precisa seguir o que determina a Lei de Diretrizes e Bases, a LDB, que tornou “obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena” em todos os estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados.

Para a professora e comunicadora indígena Ingrid Sateré Mawé, dirigente da Central Sindical e Popular Conlutas, os argumentos usados para remover Márcia da escola sinalizam violações da LDB.

“Existe um entendimento muito errado de que a cultura indígena só deve estar presente em conteúdos específicos e isso não é verdade. Essa sempre foi uma questão histórica, tanto que foi preciso a lei 11.645/2008 para reafirmar a necessidade de tornar obrigatório o estudo da história e cultura indígena de forma transversal em diferentes conteúdos e disciplinas”, explica Ingrid.

A liberdade de cátedra – um princípio que assegura a liberdade de ensinar e de aprender – também é prevista pela Constituição (artigo 206) e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (artigo 3º).

Deixar a escolinha de Nazaré —e nessas circunstâncias— é separar Márcia da própria história. Criada ali na vila às margens do Madeira, onde a família fincou pau forte depois de vir de Uruapiara (AM), a história de Márcia remonta a própria história do seu povo Mura, que sofreu diversos estigmas, massacres, perdas demográficas, linguísticas e culturais ao longo do processo de colonização.

Com muito custo, nas palavras de Márcia, fez graduação e mestrado em Rondônia, enquanto a família se deslocava pelo território, ora por doença, ora por questões financeiras. Ao concluir o doutorado pela USP, em 2016, decidiu compartilhar com sua comunidade os saberes proporcionados pela troca de conhecimento na construção da dissertação “O Espaço Lembrado” (2008) e da tese “Tecendo Tradições Indígenas” (2016).

Ao percorrer as áreas de seringal, desde Nazaré a Uruapiara, passando por Humaitá (AM) e na Terra Indígena Itaparanã, Márcia percebeu que aqueles espaços, apesar de notadamente terem passado por algum processo de “apagamento da presença indígena”, também mantém tradições ancestrais indígenas.

“O intuito foi alinhavar uma reflexão sobre os modos de ser indígenas e seus mecanismos de resistência, para que a maneira de viver ligado à natureza se mantenha viva, diante das ameaças dos projetos desenvolvimentistas que não consideram os patamares da cultura dessas comunidades que se estendem ao longo das margens dos rios e lagos da Amazônia”, escreveu Márcia na tese que também assume tom de denúncia quando trata das “políticas genocidas e etnocidas contra os povos indígenas e tradicionais”, principalmente àquelas ligadas a projetos desenvolvimentistas como as hidrelétricas da região do Rio Madeira.

Numa das passagens do estudo que virou livro, escreveu: “Essa Amazônia que fica em chamas de um lado e deserta do outro, e ao mesmo tempo oferece uma água fria de um igarapé para se refrescar, enquanto passa um incêndio acidental ou provocado do lado ou se desmata uma grande área para criar gado ou plantar soja ou ainda desvia-se um rio para construir uma hidrelétrica. Essa Amazônia cheia de gente que canta, que luta, que sonha e faz poesia, que perde suas lideranças assassinadas e chora, fica com o nó na garganta, levanta a cabeça, finca o pé no chão e não desiste de lutar pelo seu espaço de vida”.

“Nós, Muras, além de termos passado por um processo de colonização portuguesa e espanhola, também fomos tupinizados. Isso que estou passando para eles [os alunos] em sala não se encontra em livro didático nenhum”, diz a professora.

Concentrados no interflúvio Madeira-Purus, os povos Muras sofreram intensamente com o processo de colonização, que extinguiu sua língua materna e até hoje pressiona a etnia, alvo de constantes ameaças contra sua cultura e seu território. Áreas ocupadas pelos Muras atualmente estão na mira de megaprojetos, como a reconstrução da BR-319, que pretende ligar Porto Velho a Manaus, e na construção de uma mina de potássio que quer escavar por debaixo da Terra Indígena em Autazes.


Fonte: https://sul21.com.br/noticias/educacao/2021/10/professora-e-removida-de-escola-publica-por-insistir-na-tematica-indigena/. Acesso em 08/02/2021.