sexta-feira, 29 de agosto de 2025

ESCOLA RIBEIRINHA NA AMAZÔNIA: PARA ALÉM DO DISCURSO

O Município de Porto Velho/RO tem como principal bacia hidrográfica o Rio Madeira, que de acordo com o Plano Diretor da cidade é formada por três regiões: Alto, Médio e Baixo Madeira. Nessas regiões estão distribuídos quatorze distritos. Abrange uma área de aproximadamente 34 km² e mais de 500 km de extensão Leste-Oeste, quase 15% do território do estado de Rondônia.

A região é constituída por uma variedade de ecossistemas e uma diversidade de povos com saberes, habilidades, costumes e valores próprios que torna a região um espaço inter/multicultural, cuja diversidade cultural, social e étnica sustenta sua riqueza sócia histórica.

A escola existente nesses territórios possui extrema importância para a reprodução social dessas populações (FABRÉ, et al, 2007). Apesar da peculiaridade e riqueza das localidades, marcada pela subida e descida das águas, a política de educação escolar tem sido predominantemente pautada no modelo urbano-cêntrico reproduzindo fortemente a desvalorização do modo de vida, reforçando o êxodo rural e consequentemente a falta de desenvolvimento econômico da região.

Essa desvalorização, marcada pela pouca atuação do Estado, tem proporcionado um considerável índice de jovens e adultos não alfabetizados e de pessoas com tempo de escolaridade inferior a quatro anos. Possui um baixo IDH e índices do IDEB nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Esses baixos indicadores sociais e humanos refletem o peso do tratamento subalterno que a população ribeirinha historicamente tem recebido.

Pensar o espaço de uma comunidade ribeirinha na Amazônia significa superar algumas visões estereotipadas acerca dos significados do que é viver essa múltipla identidade, marcada por diversos aspectos, que vão desde a relação imbricada com a natureza à construção diária da vida nas práticas do cotidiano.

A população ribeirinha vive dinâmica própria condicionada no tempo e no espaço em que estão situados, possuindo condições para viver sem grandes problemas, mas o que lhes faltam é melhores condições de acesso às políticas públicas. Nesse sentido, convém destacar a Constituição Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988), ao dizer no Artigo 205 que: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

A falta, ou a quase inexistência, de atenção governamental é amplamente perceptível nessas regiões evidenciada na carência de atenção para um dos principais alicerces da formação dos cidadãos, a escola. Com efeito, a escola ribeirinha da Amazônia passa por problemas ainda mais recorrentes devido às dificuldades de acesso, uma vez que estão localizadas às margens dos rios, em locais de difícil acesso.

Ademais, a falta de planejamento educacional nessas áreas em conformidade com os anseios da população evidencia a imposição de uma estrutura social, na qual os padrões educacionais, culturais, didáticos e institucionais urbanos são transpostos, em muitos casos negando a identidade dos povos tradicionais locais.

Nesse sentido, as potencialidades próprias são essencialmente tidas como inexploradas pelos estudantes, cujas relações de ensino e de aprendizagem ocorrem como reflexo das relações educacionais vivenciadas nas escolas urbanas. O currículo das escolas nessa região necessita contemplar elementos de compreensão da realidade por elas vividos de forma especializada.

Trata-se de uma escola que tem suas diferenças, suas características, suas marcas, e que precisa ser respeitada enquanto instituição que abriga outro modo de viver as relações pedagógicas do currículo, e sendo assim, precisa voltar-se para suas necessidades cotidianas (VICTÓRIA, 2008).

São milhares de crianças e jovens que têm suas vidas inseridas num modo peculiar de viver, trabalhar e estudar. Um modo de vida marcado por uma cultura diferenciada, caracterizada principalmente pelo contato com as águas, de onde retiram o sustento para eles e suas famílias.

Muitas destas crianças já começam a lidar com a pesca e a agricultura desde muito cedo, ajudando seus pais e com entusiasmo, participam do sustento diário de suas famílias (CHAVES, 1990). Neste contexto, a escola seria o lugar ideal para o incentivo ao protagonismo do avivamento do conhecimentos historicamente repassados de geração em geração.

Diante disso, é salutar refletir de forma especializada e pensar um currículo para as escolas ribeirinhas de forma que contemple elementos de compreensão da realidade das pessoas que nela buscam ampliar seus horizontes de conhecimentos para o desenvolvimento e a permanência no espaço por elas vivido.

Acredita-se que é possível por em prática um currículo escolar a partir dos ribeirinhos e para os ribeirinhos, no qual se estabeleça relações na tríade práticas pedagógicas, contexto sociocultural e currículo escolar (BRITO, 2008).

Ribeirinhos é uma denominação geralmente usada para caracterizar os pequenos produtores que têm nas terras de várzea o seu espaço social organizado. Diferencia-se do pequeno produtor da terra firme, não só por ocupar um espaço físico diferente, mas também por sua relação com a terra (CHAVES, 1990) e com a água.

A partir do Decreto nº 6.040, de 7/02/2007, as comunidades tradicionais foram entendidas como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais. Possuem formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando ainda conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição e não apenas meros transmissores dos modos de vida na beira do rio.

Frente a esses paradigmas a educação nas comunidades ribeirinhas precisa ser profundamente repensada. O modelo de educação utilizado nas áreas urbanas apresenta problemas graves e, quando transportado para o mundo ribeirinho, a situação adquire contornos trágicos.

Para Santomé (1998), o mundo rural e ribeirinho costuma ser silenciado nas intenções e ações pedagógicas. Então, há necessidade de rever velhos conceitos, persistentes paradigmas e antigas atuações pedagógicas e anunciar novas formas de atuação nesses espaços concretos e ricos de experiências, conhecimentos e possibilidades.

Nesse sentido, as conquistas da educação escolar nessas comunidades, inspirada nos princípios da Constituição Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988) e da Lei nº 9394/96, voltada para a construção de uma nova filosofia de desenvolvimento local e regional poderá possibilitar um horizonte educacional de grande valia para inspirar os gestores a refletirem sobre novas possibilidades de pensar o currículo escolar além do rotineiro processo educacional vivido na maioria das realidades educacionais de nosso país.

Faz-se necessário repensar as praticas e os conceitos pedagógicos voltados às escolas implantadas nas comunidades ribeirinhas da Amazônia evidenciando-as como um espaço para a difusão de valores e conhecimentos para o desenvolvimento econômico, social e cultural dos grupos humanos que ali habitam.

Para isso, os saberes tradicionais, as crenças, a cultura das populações ribeirinhas precisa ser considerada nas discussões de um projeto de escola que se caracteriza por ser diferenciada em seus aspectos sociopolítico, cultural e pedagógico. Ou seja, a implementação de uma política educacional que possibilite através dos currículos escolares o protagonismo dos homens e mulheres que residem e trabalham nesses espaços geográficos de assumirem a condição de seu próprio projeto educativo.

Deverá também proporcionar a integração das populações quanto à formatação dos currículos escolares voltadas as suas necessidades, as metodologias de ensino que devem ser voltadas para essas regiões, e consequentemente sua interação com os sistemas de produção local, tendo em vista que a forte presença abusiva das denominadas culturas hegemônica nas práticas escolares tem silenciado as vozes dos grupos minoritários e/ou marginalizados por não disporem de estruturas importantes de poder.

Ademais, é necessário propiciar discussões sobre a implementação da política educacional desencadeada pela nova Base Nacional Comum Curricular, trazendo consigo a possibilidade efetiva dos homens e mulheres que residem e trabalham nos espaços rurais protagonizarem, na condição de sujeitos, a sua própria história, trazendo consigo elementos para reflexão na construção de um projeto de escola rural/ribeirinha que possa impactar diretamente no calendário e no tempo escolar, conforme a lei estabelece, e de acordo com as peculiaridades da região evidenciando novas discussões quanto às possibilidades de interrelação curricular com as escolas da área urbana.

MUDANÇAS CLIMÁTICAS E SEUS EFEITOS NAS COMUNIDADES RIBEIRINHAS DA AMAZÔNIA

A Região Ribeirinha do baixo Rio Madeira no Município de Porto Velho, Estado de Rondônia é formada por quatro Distritos: São Carlos, Nazaré, Calama e Demarcação. Abrange uma área de 7.833,85 km² que é constituída por uma variedade de ecossistemas e possui uma diversidade de povos com saberes, habilidades, costumes e valores próprios que torna a região um espaço inter/multicultural, com populações cujas diversidades cultural, social e étnica sustentam a sua riqueza sócio histórica.

Atualmente, esses distritos contam com energia elétrica, telefone, televisão com recepção via antena parabólica e internet. Na área da saúde apresentam condições regulares nos aspectos físicos e de atendimento primário, se comparado aos demais da região. Um dos grandes desafios dos habitantes dessa região corresponde à falta de profissionais qualificados.

A água consumida é captada diretamente do rio através de bombas elétricas ou de poços semi-artesianos. A má qualidade gera muitos problemas de saúde, especialmente na época em que o nível dos rios começam a subir, e do mesmo modo, quando começa a descer.

O atendimento educacional é regular, presentando dificuldades relacionadas ao transporte escolar. As escolas possuem estruturas físicas satisfatórias e contam com professores habilitados, porém ainda não em número suficiente para atender todas as disciplinas do ensino fundamental e médio.

Organizados em associação, os ribeirinhos realizam diversas atividades e festas tradicionais em várias épocas do ano, atraindo centenas de pessoas para a região. Um cenário de somatórios de ativos materializados em saberes e prática culturais intangíveis que segundo Brugnera (2015) reflete a ocupação das paisagens, resultante de um processo de longa duração da ocupação amazônica por uma diversidade de identidades culturais.

Neste ecossistema, as terras representam para a população que nela vivem, uma relação de propriedade provisória, dependendo de sua utilização para o trabalho. São terras baixas inundadas periodicamente, ocupadas em grande parte por caboclos ribeirinhos, populações tradicionais que têm suas vidas inseridas num modo peculiar de viver, trabalhar e construir saberes (FABRÉ, et al, 2007).

O modo de vida é marcado por uma cultura diferenciada, caracterizada principalmente pelo contato com as águas – cheias e vazantes, terras e floresta. São seres humanos que decidem o que manter, criar e desenvolver em cada ecossistema, por meio de um conjunto de recursos, técnicas e estratégias adquiridas ao longo do tempo. São possuidores de uma vasta experiência na utilização e conservação do espaço, da biodiversidade e da ecologia dos ambientes onde vivem e trabalham (BARREIRA, 2007).

A peculiaridade e riqueza dessas localidades, marcada principalmente por ciclos de cheias e vazante dos rios, tem mostrado ao longo dos anos uma riqueza de conhecimentos diante das significativas manifestações da natureza, no que se refere a percepção das alterações na dinâmica do clima e da paisagem que a cada ano redefinem a margem dos rios. Tais fatos os obrigam também a redefinir o uso e ocupação desses espaços.

Ao mesmo tempo em que as populações ribeirinhas redefinem seus novos espaços de ocupação, de algum modo redefinem também suas atividades sociais e econômicas, além de comprometer as estruturas e até modificações nas moradias que devem ser capazes de responder aos fatores naturais a que são expostas e proporcionar ambiente termicamente confortáveis aos seus usuários.

Em Rondônia, os ribeirinhos que vivem nas margens do baixo Rio Madeira, no Município de Porto Velho, são alguns dos mais impactados. Tal posicionamento nos leva a questionar sobre quais percepções, efetivamente essa população tem das mudanças do clima na região e as possíveis interferências na estrutura produtiva social, politica e ambiental.

Pensar o espaço de uma comunidade ribeirinha na Amazônia significa superar algumas visões estereotipadas acerca dos significados do que é viver essa múltipla identidade, marcada por diversos aspectos, que vão desde a sua relação com a natureza à construção diária da vida nas práticas do cotidiano.

As marcas do espaço geográfico e suas influências como as descritas no contexto do período das cheias e vazantes dos rios são uma das principais marcas do viver que transbordam de sentidos culturais e sociais materializados nas suas práticas.

Diante dos novos paradigmas enfrentados, em função das mudanças climáticas globais, novos e diferenciados arranjos espaciais na superfície do planeta e na vida dos homens provavelmente se constituirão (MENDONÇA, 2003).

O que se evidencia certamente será a constituição de novos cenários de adaptações nos novos modos de viver e morar, proporcionada pelos eventos hidrológicos, potencializados pelas variações do clima, que forçam as populações a buscar novas adaptabilidades.

Nesses espaços, assim como em toda a Região Amazônica brasileira é perceptível a variabilidade climática. Os eventos extremos, de forte seca, muita chuva e grandes cheias dos rios estão cada vez mais agressivos provocando relevantes impactos econômicos forçando as populações locais a encontrar novos meios de sobreviver com um clima cada vez menos previsível.

Para as pessoas que vivem nessa região, o vai e vem das águas ao redesenhar as paisagens, ao ditar o ritmo da vida e da economia local, exige cada vez mais diferentes mecanismos de adaptação ao longo do ano.

O período de chuvas ou forte atividade convectiva é compreendido entre novembro e março, sendo que o período de seca é entre os meses de maio e setembro. Os meses de abril e outubro são meses de transição entre um regime e outro (FIGUEROA, S. N. & NOBRE, C. A, 1990).

O pico mais alto das cheias dos rios se dá entre os meses de janeiro, fevereiro e março, período no qual os ribeirinhos, moradores nas terras de várzeas ficam sem qualquer possibilidade de plantar, colher ou obter fonte de renda, caracterizando um cenário de novos desafios em virtude da necessidade do deslocamento para outras regiões rurais ou urbanas, tendo que se adaptar a outras realidades socioculturais, ambiental e principalmente econômicas, uma vez que a sua sobrevivência, nesse período está alicerçada basicamente na pesca.

Estudos realizados por Blennow e Persson (2009) destaca que os indivíduos percebem e adaptam-se a eventos de variabilidade e mudanças climáticas tendo como base em observações pessoais e fatores culturais. Tais trabalhos reforçam a hipótese de que experiências advindas da percepção do clima local podem influenciar não só as crenças acerca do aquecimento global, mas também nas respostas e atitudes dos indivíduos, frente às alterações do clima e os impactos dela decorrentes.

O conceito de ribeirinho aparece pela primeira vez no Brasil, a partir de debates e reflexões de Furtado e Maneschy (2002), docentes do programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará, ao publicarem um artigo em coautoria inédito e intitulado Gens de mer et contraintes sociales: les pêcheurs côtiers de l´etat du Párá, nord du Brésil em 2002.

Nesse artigo as autoras aplicaram o conceito em suas realidades de análise, propondo o termo ribeirinho como expressão de um modo de viver dos grupos sociais localizados à margem de mananciais aquáticos, de onde emanam os elementos materiais, imateriais e simbólicos que configuram o modo de vida desses grupos

Os ribeirinhos são uma referência de população tradicional na Amazônia, a iniciar pela forma de comunicação, no uso das representações dos lugares e tempos de suas vidas na relação com a natureza. Desde a relação com a água, seus sistemas classificatórios da fauna e flora formam um extenso patrimônio cultural. Vivem em agrupamentos comunitários com várias famílias, localizados, como o próprio termo sugere, ao longo dos rios e seus tributários.

O termo ribeirinho também é geralmente utilizado como uma denominação de caracterização dos pequenos produtores que têm nas terras de várzea o seu espaço social organizado. Diferencia-se do pequeno produtor da terra firme, não só por ocupar um espaço físico diferente, mas também por sua relação com a terra e com a água (CHAVES, 1990).

A partir do Decreto nº 6.040, de 7/02/2007, as comunidades tradicionais foram entendidas como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais. Possuem formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando ainda conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição e não apenas meros transmissores dos modos de vida na beira do rio.

Concernente aos conhecimentos adquiridos por estes povos ao longo dos anos, Boff (2004) exclama: “o conhecimento tradicional é uma sabedoria feita da observação e da ausculta da terra”. Esses ainda são determinantes para o equilíbrio existente entre estas populações e a natureza, já que sua sobrevivência depende da manutenção dos recursos naturais.

Nesse sentido, considera-se que o modus vivendi e a organização política das comunidades tradicionais ribeirinhas são marcados e orientados por uma identidade pautada nos valores socioculturais e na dinâmica sócio histórica da região amazônica.

O ribeirinho tradicional tem na agricultura de pequena escala, no extrativismo, na pesca e na caça, suas atividades de subsistência familiar, reguladas pelos ciclos de sazonalidade (MURRIETA, 2008).

Algumas comunidades ribeirinhas da Amazônia, ainda têm como característica certo grau de isolamento, e por consequência, possuem pouca influência política e organização social. Há em comum a apresentação de um conjunto de características próprias, que se distingue das demais populações do meio rural ou urbano, e por isso merecem ser objeto de proposições de ações que possam orientá-los, quando necessário a minimizar as consequências das mudanças que se configuram no espaço onde vivem.

É premente a discussão sobre as percepções e as formas de adaptar-se das populações ribeirinhas da Amazônia em função dos eventos climáticos na região que muito tem se agravado nos últimos anos, que se configuram na conformidade com a própria natureza, das quais emergem novas dialéticas impostas por elas próprias que podem demonstrar a riqueza de conhecimentos advindos desse povo que se reinventa a todo o momento.

São conhecimentos passados por gerações, que vão além das atividades de trabalho, uma vez que esses grupos de moradores articulam suas relações sociais, principalmente, com o movimento do rio, que configura igualmente o seu cotidiano e rege o movimento de entrada e saída da população nessa região.

Trata-se de um universo constituído por elementos que moldam uma forma singular de viver na Amazônia que enseja urgente a adoção de políticas públicas que possam atender as demandas da população, que por tantas vezes têm sido negligenciada e que atualmente se agrava em consequência das mudanças climáticas que se agrava na região.