A obra Os
intelectuais e a organização da cultura, de Antônio Gramsci, é um compêndio
contendo as diversas anotações realizadas pelo pensador comunista, durante o
período em que foi vítima de cárcere pelo regime fascista italiano.
O ponto
central do livro, organizado por editores após a morte de Gramsci, orbita em
torno da formação dos intelectuais, cuja denominação, para o autor, não se
restringiria à formação acadêmica desses indivíduos, mas sim ao desempenho de
sua função efetiva enquanto agentes sociais. Desta maneira, todos os indivíduos
seriam, para Gramsci, intelectuais, sem que todos, no entanto, exercessem
necessariamente essa função na sociedade:
Todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então: mas nem todos
os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais. Quando se
distingue entre intelectuais e não-intelectuais, faz-se referência, na
realidade, tão-somente á imediata função social da categoria profissional dos
intelectuais, isto é, leva-se em conta a direção sobre a qual incide o peso
maior da atividade profissional específica, se na elaboração intelectual ou se
no esforço muscular-nervoso. Isto significa que, se se pode falar de
intelectuais, é impossível falar de não-intelectuais, porque não existem
não-intelectuais. Mas a própria relação entre o esforço de elaboração
intelectual cerebral e o esforço muscular-nervoso não é sempre igual; por isso,
existem graus diversos de atividade específica intelectual. Não existe
atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se
pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua
profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um
“filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo,
possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou
para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de
pensar. (GRAMSCI, 1982, p. 6)
Desta
maneira, para Gramsci, a intelectualidade é caracterizada pelo poder de ação
deste indivíduo em seu meio social, tornando-se “um certo tipo de agente capaz
de fazer a ligação entre superestrutura e infra-estrutura, independente [sic]
de sua escolaridade específica, mas relacionada diretamente com o “lugar” que
ocupa nas relações materiais/sociais de uma determinada produção social”.
(SOUZA PINTO, 2011, p. 27). Assim, nossa análise consistirá na relação entre a
metodologia do ensino de Filosofia e a formação adquirida pelos alunos, que à
luz da concepção gramsciana, poderão exercer, na prática, as reflexões
filosóficas ensejadoras de mudança social.
Pensar o
ensino de Filosofia sob a perspectiva de intelectualidade como poder de
intervenção social, de Gramsci, é pensar em um processo de ensino e
aprendizagem que não fique restrito à repetição estéril de conceitos postulados
pelos filósofos da tradição, mas que provoque o aluno e o impulsione através do
atrelamento da teoria à prática cotidiana, fazendo com que o conhecimento dos
conceitos da História da Filosofia seja o referencial para a ressignificação do
mundo, e não o objetivo final da aula.
Através
de uma eficaz metodologia, indissociável ao ensino de qualidade da Filosofia, a
sala de aula se tornaria um laboratório conceitual, transformando o conteúdo
filosófico em reflexão ativa para o aluno. Para o pedagogo e filósofo Silvio
Gallo, em referência à teoria de fabricação de conceitos de Gilles Deleuze e
Félix Guattari, o ensino de Filosofia, para que seja de fato significativo e se
incorpore à vida do aluno, é preciso que promova uma movimentação do
pensamento, a experimentação do aluno pelo processo criativo:
(…) parece-me que podemos caracterizar assim as etapas de trabalho numa
“oficina de conceitos”: 1.Sensibilização; 2.Problematização; 3.Investigação;
4.Conceituação. Através do trabalho progressivo nessas quatro etapas, podemos
colocar aos estudantes um problema filosófico, fazendo com que eles vivenciem o
problema, para que possam efetivamente fazer o movimento da experiência de
pensamento. O problema não pode ser um falso problema ou um problema alheio,
externo a eles. Se só pensamos a partir de problemas que efetivamente vivemos,
é importante que eles vivenciem o problema, apropriem-se dele, o incorporem. A
partir do problema vivido, podemos investigar na história da filosofia
conceitos criados para equacionar esse problema ou problemas próximos a ele. E
testar esses conceitos em relação a nosso problema, saber se eles nos servem ou
não, se precisam ser adaptados, recriados, ou se podem ser descartados. Por
fim, o momento da experiência filosófica de pensamento propriamente dita: o
equacionamento do problema através de um conceito, seja ele um conceito
apropriado de um filósofo, um conceito recriado ou um conceito realmente novo,
criado com originalidade. (GALLO, 2006, p.47)
Desta
maneira, o professor de Filosofia deve valer-se de uma metodologia, a ser
adaptada a cada turma, que não se atenha ao postulado pela História, mas que
discuta os dados e conceitos históricos para situar o aluno à dimensão
conceitual abordada, levando-o a refletir sobre seu papel na sociedade
(des)organizada. Em analogia a Gramsci e sua argumentação sobre o papel dos intelectuais,
podemos supor que este aluno sensibilizado em seu repertório por uma
problematização filosófica, e já tendo atravessado a investigação dos “por quês
e senões” para a determinação conceitual do problema levantado, poderá travar
uma relação de contra-hegemonia com o poder dominante, sem legitimar o sistema
excludente e opressor da divisão social em castas, emancipando-o. Para essa
emancipação, Gramsci defende a “escola unitária”:
A escola
unitária ou de formação humanista (entendido este termo, “humanismo”, em
sentido amplo e não apenas em sentido tradicional) ou de cultura geral deveria
se propor a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los
levado a um certo grau de maturidade e capacidade, à criação intelectual e
prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa. (…) O advento da
escola unitária significa o inicio de novas relações entre trabalho intelectual
e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social. "O
princípio unitário, por isso, refletir-se-á em todos os organismos de cultura,
transformando-os e emprestando-lhes um novo conteúdo". (GRAMSCI, 1982, p.
121 e 125).
Com isso,
podemos refletir sobre a importância de uma metodologia que leve o ensino de
Filosofia da teoria à ação, tornando o aluno capaz de orquestrar as mudanças
advindas do exercício de um senso crítico sobre o mundo, a partir de uma aula
que não seja apenas expositiva, mas que dialogue com seus interesses e sua
potencialidade adormecida para transformação social.
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